![]() |
Um amigo meu sexagenário, que chamo de Landim, tem o hábito de sempre que nos encontramos contar algumas histórias, enquanto saboreamos um cafezinho ou até mesmo um chope. Uma dessas histórias vou compartilhar com você, caro leitor. Dizia ele que seu pai era um misto de herói e uma pessoa simples e humilde, muito trabalhador e responsável, porém a qualidade que Landim mais admirava nele era a forma como contava causos mirabolantes. Passou, então, a fazer uma pequena descrição desse homem, um negro, alto, não muito bonito, um ser bondoso, sujeito desconfiado, carinhoso, um tanto arredio, sempre pensativo, que reclamava de não ter tido a oportunidade de estudar. Por isso trabalhava bastante, para dar exemplo a seus filhos e a sua esposa, pois acreditava que um homem que não tem estudo precisa demonstrar sua honestidade por meio do trabalho. Por isso dizia para todo mundo: “Enquanto eu tiver saúde irei trabalhar“. Para ele, quem trabalha um pouco a mais do que a maioria das pessoas adquire crédito com Deus, repetindo o velho ditado “quem trabalha Deus ajuda”. Enquanto Landim descrevia seu pai, os seus olhos brilhavam, denotando muita admiração pelo seu progenitor. Ele falava da curiosidade que seu pai tinha e da facilidade em aprender. O pai de Landim exercia várias profissões como pedreiro, bombeiro hidráulico, pintor de parede, e, em algumas vezes, arriscava-se como eletricista, o que quase sempre se tornava um perigo, pelo simples fato de ser uma pessoa inquieta, podendo causar um acidente. Meu amigo disse que se seu pai tivesse feito terapia, provavelmente o diagnóstico seria de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Landim sorria ao relembrar as tiradas do seu pai/herói, que dizia, nas suas prosas, que não gostava de pessoas “preguiçosas da cabeça” . Para ele “essa gente fala que não sabe fazer uma coisa, sem ao menos tentar uma vez”, dando apelidos a esse tipo de pessoa: “Dona não consigo” ou “Senhor não consigo”. O meu amigo Landim relatou, com orgulho, quando seu pai construiu a primeira casa para a família. Ainda menino, ele ajudou cavando os buracos para o alicerce, ressaltando que, apesar de na época ter 11 anos de idade, guarda até hoje na memória essa responsabilidade que lhe foi dada. Contou que esperava ansiosamente a aprovação de seu pai com relação a tarefa que tinha recebido para executar. Era gratificante quando ele a aprovava, dizendo “muito bem! Vamos embora porque hoje nós trabalhamos bastante. Agora é torcer para que Deus não se esqueça de anotar nossos créditos”. |
Somos um punhado de histórias |
Durante a narrativa das proezas e façanhas de seu pai, em certo momento notei em seu rosto um leve tom de tristeza e sua voz saiu embargada quando relatou não sabia o lugar onde seu pai estava, mas, com certeza, deveria continuar trabalhando. Nunca esqueceu das frases que seu pai dizia como: “Quem trabalha não tem tempo para pensar em besteiras”, e repetia sempre outro ditado: “cabeça vazia é arapuca do diabo”. Não saberia explicar a tristeza estampada no rosto do meu amigo, talvez marcada pelas saudades e sensação de desamparo. Naquele momento, ouvindo essa história, foi possível compreender como a dor da perda de um ente querido deixa sequelas psíquicas e continua fazendo muito barulho na cabeça daqueles que ficam. Talvez os nossos encontros para um café ou chope, juntamente com o rememorar dessa história, sirva como fonte de aprendizado para que eu e meu amigo possamos nos dedicar um pouco mais ao amor e ao acolhimento que temos recebido e doado aos nossos entes queridos Aos 91 anos, o pai de Landim falava para todo mundo: “Deus é bondoso comigo, pois sempre me orientou como conduzir minha vida e a de minha família. Me considero um bom aluno. Acho que adquiri alguns créditos com o Criador”. Sua crença de que tinha crédito com Deus o levava a pedir favores ao Criador: “Gostaria de morrer primeiro que qualquer uma das pessoas que amo”, ou seja, antes dos filhos, netos, bisnetos e esposa. Foi assim que aconteceu. Pode-se dizer que os créditos valeram e que ele foi um sortudo. Essa faceta do pai de Landim também mostrava um lado meio pretensioso. Afinal, ele acreditava que tinha créditos com o Todo Poderoso, como se pudesse manter uma poupança para a vida eterna. |
Créditos do Banco Central do Criador |
Em uma de suas caminhadas matinais, Landim e seu pai entraram na igreja para assistir à Missa. Como não estavam com roupas adequadas para aquele evento, porque vestiam bermudas, regatas velhas e surradas, chinelos de dedo, meu amigo comentou: “O senhor não acha esquisito entrarmos na igreja? Todo mundo está arrumado, com roupas novas e bonitas, e nós estamos bagunçados”. Mal acabou de argumentar, o pai deu a resposta: “Já te falei. Deus dá um desconto, porque eu tenho crédito lá em cima”, e abriu um sorriso maroto com o canto da boca. Landim confidenciou que seu pai pediu para ele seguir devagar na vida, e que, de preferência, vivesse intensamente cada história construída com as pessoas do seu convívio, pois as histórias são formas de mantermos vivos aqueles que amamos. Também desabafou, dizendo que não sabia se teria a honra de obter o crédito que seu pai sempre teve com o Criador, ou seja, morrer antes das pessoas que amava. Mas de uma coisa ele tinha certeza: estava tentando ser melhor a cada dia, como ser humano, marido, pai, filho, avô, procurando seguir o conselho de seu velho pai, pedindo a Deus para contabilizar seus créditos, se é que estava sendo bom aprendiz. “Nossa!”, exclamou de repente, “estou ficando igual ao meu pai, me achando. Nem sei se Deus tem banco mesmo. E, se tem, pode ser que meu nome esteja sujo no Banco Central do Criador (BCC)”. Rimos juntos desses deliciosos delírios, inspirados no pai de Landim. Pouco depois, ele coçou a cabeça e concluiu: “Pensando bem, se não fosse meu pai, não estaria aqui para contar essas pequenas histórias. Por isso, sou eternamente grato a ele e a Deus”. E emendou: “A prosa está boa, mas tenho que continuar trabalhando. Vai que esse negócio de crédito com Deus é verdade, quem sabe posso fazer uma poupança que irá me ajudar no futuro”. Despedimos com um abraço apertado. Foi quando ele me disse baixinho: “Cuide do seu pai, mesmo que ele não esteja mais presente entre nós, pois ele vive em você a partir das histórias que vocês construíram juntos. Procure ser harmônico e feliz, construa as mais variadas histórias com as pessoas que você ama, porque, ao final, são elas que realmente contam”. |